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06/11/2019 16:40

Novo livro da escritora Patrícia Melo tem como tema o feminicídio

Mulheres empilhadas será lançado em Salvador na terça-feira (12)

A maioria dos casos de feminicídio começa com um pequeno abuso. Passa de uma corriqueira reclamação para um ciúme desmedido, o controle, as humilhações. Tudo entremeado por pedidos de perdão, promessas e seduções. Como em uma espiral, é um comportamento que vai da violência psicológica para a violência física, em um movimento que pode durar anos. É tão cruel que a mulher duvida dela mesma. De suas capacidades, de seu comportamento, de sua autonomia. Isso porque as acusações são ambíguas e sempre responsabilizam a mulher pelos problemas. Ela vai se tornando cada vez mais envergonhada, se desestrutura e não consegue reagir. Quando a espiral alcança o estágio da violência física pode ser tarde demais. Qual é a hora de cortar? Como denunciar? De que maneira interferir?

O novo livro da escritora, roteirista e artista plástica Patrícia Melo, 57 anos, traz todas essas questões nas personagens que retrata. É uma ficção baseada em extensa pesquisa de casos reais. Todas aquelas situações, de fato, existem. São circunstâncias que atravessam diferentes classes sociais, raças e crenças. A autora demonstra que o silêncio é cúmplice na morte dessas mulheres e a omissão do Estado é conivente com a sociedade misógina que permite um feminicídio a cada oito horas (dados do Atlas da Violência 2019). São milhares. São, portanto, "Mulheres empilhadas", título da obra editada pela Leya. Trata-se de um mergulho no mundo do feminicídio, que chega aos tribunais, aprofunda nos agressores, mostra a complexidade das violências nas famílias, vê negligências e lança mão do humor em alguns momentos.

Com 25 anos de carreira, Patrícia Melo é uma das mais premiadas autoras da literatura brasileira contemporânea. Escreveu 11 livros publicados em diversos países. Ganhou o prêmio Jabuti de melhor romance por "Inferno" (Companhia das Letras) e o LIBeratourpreis por "Ladrão de Cadáveres" (Rocco), entre outros. Vive na Suíça com o marido, tem duas filhas e dois netos. "Mulheres empilhadas" é seu primeiro livro em que o protagonista é mulher.  Os lançamentos acontecem no Rio de Janeiro nesta quarta (6), em Belo Horizonte na quinta (7), em Salvador na terça (12) e em São Paulo na quarta (13). Nesta entrevista, Patrícia conta como a pesquisa, que a levou a conhecer o feminicídio profundamente a tocou para a vida inteira.

Universa – Por que você escolheu o feminicídio para seu novo romance?

Patrícia Melo – Quase a total maioria dos meus protagonistas é homem. Acho que essa matança de mulheres é a questão mais urgente que ocorre hoje no Brasil. Somos o quinto país no ranking dos países feminicidas. Como abordar essa temática dentro da literatura? Na época, o Brasil tinha 10 mil casos de feminicídio nos tribunais aguardando julgamento, que são muito dolorosos para as famílias. O sistema judiciário resolveu fazer esses mutirões nos estados para acelerar os processos. Vi duas coisas que me interessaram: o Acre tinha o mais alto índice de casos de feminicídio e era o mais eficiente entre os estados que aderiram aos mutirões. E aí começou.

(...)

O título "Mulheres empilhadas" se refere à impunidade?

À impunidade mas também à normatização. Tudo o que é uma pilha é algo que você não dá valor. É nesse sentido. Durante a feitura do livro, a sensação é que eu estava o tempo todo lendo a mesma história, aquele monte de corpos, essas mulheres morrendo à toa. Foi uma imagem de uma sensação que descreve o desperdício de vida. Uma vida desperdiçada, uma morte naturalizada. Uma certa aceitação da realidade que me choca. Uma coisa é você saber, ler no jornal. Todos os dias a gente tem essa experiência. Faz parte da nossa observação diária. A gente não consegue não ler, toda mulher não consegue não ler. Você sempre é atraída para esse tipo de notícia. Uma coisa é você ter essa percepção de observadora da realidade. Outra coisa é você entrar nesse universo. É uma luta entre a sua indignação e a sensação de impotência. Para mim foi muito isso. O título vem dessa abundância de corpos e vidas desperdiçadas.

A protagonista questiona até que ponto é culpada das agressões, se deve perdoar. É um retrato da realidade?

Uma das questões mais complicadas da violência é que é desestruturante. Antes de morrer, essa mulher desmonta. Esse desmonte não permite que ela consiga escapar muitas vezes. Porque ela está desmontada. Não está com os pés no chão sacando o que está acontecendo, não está vendo direito,  ja está com a identidade quebrada. Sente-se culpada, impotente, ruim. Acredita que é uma mãe ruim, uma esposa de merda, que é uma "bosta albina" [como no livro], burra. No liquidificador da violência, a mulher é atomizada, tem a personalidade picotada.

E o agressor parece saber disso?

O agressor não apenas sabe. Ele se diverte com isso. É um manipulador, um assassinato recreacional. É um processo longo, demora, acontece em fogo brando, e há alguém ali que está se divertindo o tempo todo. É ele. Ele se diverte enquanto dá um tapa, uma surra, se sente o super heroi, muito poderoso, se sente ganhando o jogo. Ele se diverte por muito tempo até a violência letal, o que também para ele é diversão, muitas vezes acontece junto com o orgasmo. Mata porque ele despreza a mulher, é misógino, não aceita a emancipação dessa mulher, não aceita uma relação de isonomia. Tudo isso pode estar lá socado no armário, mas no momento do conflito, virá à tona e será o fim dessa mulher.

(...)

Toda vitima de feminicidio foi vitima de violência doméstica?

Toda. É um continum de violência. O feminicídio é a ponta do iceberg que é a violência contra a mulher. Essa mulher passou por todas as fases. Geralmente, essa violência acontece em etapas e a gente só vê o elo final, que é a letalidade. Todo o resto acontece submerso. Mas toda a mulher que é assassinada sofre um continum de violência lento, que começa a crescer, vai numa espiral de potência. Começa com uma violência verbal. Às vezes até com ciúme, controle da roupa, tentativa de desconstruir a mulher verbalmente. Depois começa a violência física, que também cresce. Vai numa espiral. É previsível e evitável. Isso é terrível Como uma coisa que é previsível e que é evitável acontece nessa escala? Como a sociedade pode conviver com isso?...

É possível que com a publicação do livro você escute muitas histórias reais de violência e relacionamentos abusivos. Como vai lidar com isso?

Acho que será um movimento natural, quase uma extensão da leitura, vai fazer parte da vida do livro, vai fazer parte da minha vida. Uma atitude de resistência, como o livro, não pode ser pontual. Não pode acabar aqui. Esse livro me deu consciência de uma realidade que me acompanha, me perturba. Acho que vou continuar sendo atuante, sendo política. Me vejo inserida nesse debate agora. Estou na luta. E não vou sair da luta enquanto eu estiver viva....

Fonte: Universa

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