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23/12/2021 12:00

Cidades seguras para mulheres: como uma 'geografia feminista' pode minimizar os problemas de assédio sexual

Políticas públicas que considerem as funções ocupadas pelas mulheres na sociedade são fundamentais, segundo urbanista, para o desenho de uma cidade mais inclusiva

Evitar andar sozinha nas ruas à noite. Mudar o caminho para circular por espaços mais iluminados. Evitar o transporte público em determinados horários. Sentir medo. Práticas e sentimentos de insegurança apontados fazem parte do dia a dia de milhares de mulheres brasileiras ao saírem de casa, como mostraram, em outubro passado, dados divulgados pela pesquisa "Percepções sobre segurança das mulheres nos deslocamentos pela cidade", realizada pelo Instituto Patrícia Galvão e Instituto Locomotiva, com apoio da Uber e apoio técnico e institucional da ONU Mulheres. Mas o que está por trás do sentimento de insegurança vivido por 77% das mulheres entrevistadas no levantamento? Uma pista pode estar no livro da geógrafa canadense Leslie Kern, "Cidade feminista", recém-lançado no Brasil pela Oficina Raquel. A partir da observação da rotina em sua cidade natal, Toronto, e em outros lugares que viveu, como Londres e Ontário, Kern identificou um ponto comum a mulheres de diferentes cantos do planeta: mesmo em cidades tidas como "seguras", o sentimento da vulnerabilidade feminina ao assédio sexual é grande.

Divulgando o conceito da necessidade de uma "geografia feminista", popular e atual em debates urbanistas por cidades mais inclusivas, Kern, que é diretora de estudos sobre mulheres e gênero na Universidade Mount Allison, no Canadá, observou que a maioria dos projetos arquitetônicos e políticas de segurança desenvolvidos em centros urbanos não foram nem idealizados por mulheres e nem levaram as suas experiências em consideração. Um dado de desigualdade de gênero que é agravado, no Brasil, pela própria distribuição da população em trânsito por espaços públicos: segundo a Associação Nacional  de Transportes Públicos (ANTP), 36,5% dos deslocamentos nas cidades brasileiras são feitos a pé, e este público de pedestres é formado, em sua maioria, por mulheres.

A urbanista Estela Alves também reforça a importância de uma maior participação das mulheres nas decisões sobre as cidades brasileiras.

- A gente sabe que a maioria dos políticos, vereadores, decisores do país são homens, geralmente brancos e de classe média, que enxergam de uma visão privilegiada. Eles não têm esta visão de quem está passando perigo, que na maior parte dos casos, como vemos nas pesquisas, são as mulheres negras da periferia. As mulheres, de forma geral, estão excluídas das decisões. Há poucas vereadoras, poucas conselheiras municipais, poucas planejadoras urbanas em cargos de chefia nas prefeituras e nas subprefeituras. Esses cargos de chefia e da decisão sobre zoneamento e urbanismo também precisam ser da mulher, que vai ter a visão de todas as funções que elas ocupam no dia a dia, não só do trabalho e talvez do estudo, mas do trabalho, do abastecimento da casas, de onde deixar as crianças, os postos de saúdes, o local de deixar ou de cuidar idoso... Estas são funções que os homens geralmente não pensam quando desenham a cidade porque não faz parte da cultura deles tomar estas decisões do cuidado com a família. A participação da mulher na tomada de decisões facilitaria no desenho de uma cidade mais segura e acessível, que demandasse menos circulação e menos exposição das mulheres a riscos diários - diz a urbanista.

De fato, se a preocupação com a segurança de mulheres nas ruas e no transporte público - outro espaço pouco acolhedor à mulher - sempre foi uma questão secundária, por outro, as cidades foram "pensadas" para atender papeis culturalmente estabelecidos para homens e mulheres. Por mais que a sociedade tenha evoluído e a realidade seja outra, as cidades ainda "servem" ao modelo do homem que sai e trabalha e da mulher que fica dentro de casa.

"As experiências das mulheres foram, na melhor das hipóteses, uma reflexão tardia", lamenta Leslie Kern, que sugere soluções como mais ônibus circulando à noite, locais policiados "de espera" nos pontos de ônibus, campanhas educativas contra o assédio em diferentes pontos da cidade, entre outras políticas públicas de combate ao assédio no ambiente público.

Estela ressalta que, ao falar da mulher na cidade, é preciso localizar essa mulher. Segundo ela, mulheres que vivem na periferia e na comunidade têm mais dificuldade ainda no deslocamento e estão mais expostas a situações de violência sexual.

- Além de problemas clássicos de urbanismo nas periferias, da falta de calçada, da falta de iluminação, que facilita que o agressor chegue até a mulher, há também a questão do transporte. Quanto mais distante dos centros de negócios, das zonas mais ricas da cidade, o acesso é mais difícil e a mulher tem que andar muito tempo a pé até chegar à sua casa, ou fazer muitas baldeações. Isso é um problema bem prático e é muito fácil de se resolver rapidamente, com um planejamento do transporte público de forma que os bairros tenham muitos acessos, com mais segurança e patrulhamento em pontos de ônibus e estações de trem e metrô, por exemplo - explica Estela.

'Cidade para todos'

O relatório "De quem é a cidade? Uma avaliação da segurança urbana para mulheres em 10 países", desenvolvido pela ActionAid em 2017, já evidenciava a falta de planejamento do espaço urbano sob a perspectiva de gênero em diferentes cantos do mundo, e estabelecia uma ranking entre os países pesquisados no quesito segurança das cidades para as mulheres. O estudo lembrava o compromisso acordado na Nova Agenda Urbana, em 2016, na Conferência das Nações Unidas sobre Moradia e Desenvolvimento Sustentável, em torno do conceito "cidade para todos" e apontava recomendações de medidas a serem adotadas pelos governos locais para tornar suas cidades mais seguras para mulheres.

O Brasil ocupava a quarta posição, entre os dez países analisados, no ranking estabelecido. Segundo a análise, "foram feitos esforços ao longo das últimas duas décadas para dar visibilidade à violência contra as mulheres. O acordo acerca de um plano nacional, acompanhado de orçamento para implementação de políticas acerca dos direitos das mulheres em 2004, forneceu um conjunto de ações. Muito embora tenham ocorrido problemas envolvendo sua implementação, e pouco tenha sido feito para enfrentamento da violência contra as mulheres em áreas urbanas, algum avanço foi conquistado. Ademais, o movimento em prol dos direitos das mulheres no Brasil é organizado e forte, assumindo a liderança das lutas e ocupando as ruas na defesa dos direitos das mulheres trabalhadoras e dos valores feministas.".

Mas se destacava o empenho de organizações em defesa das mulheres, o relatório apontou também a desigualdade estabelecida no espaço urbano nacional: "As cidades brasileiras são espaços extremamente desiguais, já que os investimentos públicos e infraestrutura urbana são frequentemente priorizados para áreas de alta renda. Serviços públicos de baixa qualidade, como transporte, iluminação pública, educação, policiamento e moradia afetam de forma direta as vidas de milhões de mulheres, particularmente as pobres que vivem nas áreas periféricas", apontou o relatório.

Fonte: O Globo

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